Monday, April 14, 2014

Dulce Maria Cardoso: Amor e Poder

Um dia, ainda no tempo das disquetes e das realidades pouco virtuais, um vírus entrou no computador de Dulce Maria Cardoso e apagou-lhe todos os ficheiros, incluindo várias versões de um romance. Ficou em choque. E sem saber o que fazer. Chegou até a dar como perdida a história que a ocupou durante muitos meses, mas no fim não baixou os braços. Armou-se de um arsenal de comida. Protegeu-se com uma retaguarda de familiares e amigos. E fechou-se em casa para  reconstituir o que ainda estava vivo na sua memória. Surgia então Os Meus Sentimentos, o seu segundo romance, e um radical método criativo de trabalho. 
Os contos de Tudo são Histórias de Amor, a sua segunda coletânea, depois de Até Nós, também são resultado desse trabalho de recordação e depuração. Para Dulce Maria Cardoso, escrever é, numa primeira fase, um ato de descoberta. Mas depois, quando apaga o que escreveu (“sem hipótese de o recuperar, pois de outra forma não funciona”, garante), torna-se um meio para iluminar o essencial, uma revelação. É entre esses dois polos que se tem afirmado a sua voz, uma das mais singulares da Literatura em Língua Portuguesa: transfigurando a sua experiência pessoal, como em O Retorno, ou esticando os limites da prosa, como em Os Meus Sentimentos. Em Tudo São História de Amor, que reúne textos publicados em jornais (incluindo a sua autobiografia no JL) e em pequenas edições, descobre-se uma escritora comprometida com o seu tempo e com a sociedade em que vive. A sua literatura será sempre um exercício ético. 
Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes (Fonte Longa, Carrazeda de Ansiães), em 1964. A infância, no entanto, passou-a em Angola. O pai era exportador de café, em Luanda, gerindo uma frota de camiões. Desse período (chegou com seis meses e partiu com 11 anos) guarda muitas e boas memórias. A “generosa mangueira” do quintal e “o mar e o espaço” que a moldaram. Ainda hoje, aliás, se surpreende com as palavras de kimbundo que reteve. E recentemente, quando foi ao Brasil, ao pedir uma água de côco sentiu que permaneciam dentro de si os gestos que permitem a abertura do fruto. Tudo isso esteve na origem de O Retorno. A ponte áerea de Rui, o protagonista do romance, distinguido com o Prémio Ler / Booktailors, foi também a sua. Regressada a Portugal, em 1975, e largada em Cascais no meio de inúmeros retornados, a sua família decidiria voltar para Trás-os-Montes. 
Com O Retorno Dulce Maria Cardoso teve o reconhecimento (do público e da crítica) que há muito merecia. Formada em Direito, pela Universidade de Lisboa, estreou-se na ficção em 2002, com Campo de Sangue, que recebeu o Grande Prémio Acontece de Romance. Era já então uma autora plena, de prosa segura e narração intensa. Seguiram-se Os Meus Sentimentos (Prémio União Europeia para a Literatura), e Chão de Pardais (Prémio Pen Club), que se encarregaram de revelar uma escritora em constante fuga da sua “zona de conforto”, imagem que estes contos reforçam. Não gosta de se repetir, nem tem medo de se reinventar. Foi o que fez quando decidiu ‘matar’ a advogada que também era e assumir-se escritora a tempo inteiro. Ou como recorda na sua Autobiografia: “O que queres ser quando fores grande? Fumadora, respondi. Riram-se e disseram, isso não é profissão. Dez anos mais tarde, perguntaram noutra festa, o que queres ser? Escritora, respondi. Isso não é profissão, disseram.” Dulce nunca percebeu porquê. Mas também nunca deixou de escrever. 

Qual o lugar do conto na sua escrita?
Um lugar estranho. Gosto muito de contos, mas nunca decidi escrever um. Partiram sempre de encomendas, da vontade de responder ao desafio. E quanto menos me identifiquei com o tema, mais me esforcei, melhor me saiu. 

Isso é uma boa notícia para quem encomenda.
Quando as encomendas são abertas, pouco dirigidas ou limitadas, podem tirar-nos da nossa zona de conforto. No meu caso, as ideias que tenho são todas para romances. 

Um conto nunca deu origem a um romance ou vice-versa?
Nunca. Nos dois procuro coisas diferentes. Ambos são, no entanto, exercícios violentíssimos. Um requer fôlego e resistência, o outro, rapidez e síntese. No romance é preciso namorar. No conto tem de haver amor à primeira vista, paixão. Já me disseram que o conto que abre esta antologia, Este Azul Que Nos Cerca, daria um belo romance. Tem um ambiente sugestivo e o potencial da claustrofobia da ilha, mas não consigo imaginar mais nada. Foi pensado para ser como é. 

Estes contos são muito diferentes entre si. São também um lugar de experimentação?
Sim. De procura de novas vozes, estruturas diferentes. A arte só é arte quando corre riscos. Se já sabemos o que vamos fazer, regressamos à tal zona de conforto. Não Esquecerás é um dos meus contos favoritos e tinha tudo para falhar.

Porquê? 
Era das encomendas que se rejeita imediatamente. Do Centro Comercial Colombo, para uma iniciativa de Natal, dedicada ao tema da solidariedade e com lucros a reverter para uma fundação. O cliché montado. 

O que lhe agradou no resultado final?
Escrever é dar a um Outro. E as famílias afetadas pela tragédia da ponte de Entre-os-Rios já tinham perdido tanto que me orgulho de lhes ter devolvido um pouco da memória das vítimas. O interesse da Mónica Calle, que já usou este conto num espetáculo, e do João Mário Grilo, que o está a adaptar a uma curta-metragem, faz-me acreditar que o fiz bem. 

Esse conto podia ser um manifesto? 
A realidade é muito sugestiva e tentadora. O problema é poderes usá-la sem te transformares num abutre. Quando recebi o convite, pensei: o que pode uma pessoa que vive em Lisboa, que nunca foi a Entre-os-Rios, fazer por alguém que já sofreu tanto? Como fugir à exploração mediática das televisões, que nesse ano passaram a ter emissões 24 horas por dia? Nunca vi nada mais obsceno do que um microfone lançado a quem perdeu um familiar. E passado uns quantos meses o interesse desapareceu. 

O que contrapõe o escritor? 
A única saída é colocarmo-nos dentro do autocarro, dizer que uma parte de nós também morreu, embora a morte seja um assunto muito sério. No fundo, dizer que te assumes como responsável. Aquela ponte não caiu por acaso. Havia relatórios e denúncias. Faz lembrar a curva do Mónaco, na Marginal de Cascais. Morreu lá muita gente mas só foi arranjada quando um general perdeu lá a vida. Somos todos iguais mas uns mais iguais do que outros. Uma das funções da arte é tentar que essa igualdade seja verdadeira. 

“Não esquecerás” é então um mandamento literário?
É, antes de mais, reconhecer que ao esquecermos o Outro estamos também a promover o nosso próprio esquecimento. Um dia a tragédia chegará a nós. Mas se o interior estiver protegido, o centro também estará. De igual forma, se os emigrantes ilegais estiverem protegidos, os legais também estarão. A questão é sempre o alargamento da proteção, não a sua diminuição, como se advoga em tempos de crise. É disso que os políticos nos querem convencer. 

Mais do que espectadores ou testemunhas, somos cúmplices?
O mal sempre aconteceu pela ação de poucos e pela omissão de muitos, às vezes de milhões. Essa conivência preocupa-me. A nossa classe dirigente, que anda sempre associada às palavras incompetência e corrupção, não é muito vasta. Somos infinitamente mais. Por que razão estamos parados?

Os contos e os romances são formas de intervenção? 
Não considero que a literatura sirva para passar mensagens, a não ser em casos pontuais e sem descurar a poeticidade do texto. Mas também não faz sentido preocuparmo-nos apenas com as figuras de estilo. Não podemos olhar para a realidade de uma forma neutra. 

Escrever é uma forma de tomar posição?
Viver é tomar posição. Escrever ainda mais. Como qualquer proposta artística. 

Uma dimensão ética
Que critérios usou para organizar esta antologia? 
Estes são os contos que mais me pertencem. Até agora não me envergonho de nada que publiquei, mas deixei muitos de fora. O primeiro critério foi literário. O segundo, sentir-me nestas histórias.

Aproveitou a oportunidade para fazer um balanço?
Quis mais tornar acessível, partilhar contos publicados em pequenas edições e que muitos leitores não conhecem. Senti ainda vontade de atualizar a minha anterior coletânea de contos, com a qual já não me identifico. Mas aqui coube tudo, do ultramoderno de Coisas que acarinho e me morrem entre os dedos entre os dedos à ruralidade de Humal. Tanto num caso, como no outro, sou eu que estou lá. Não se pode ignorar a internet, que nos está a mudar, tal como não podemos esquecer que até há bem pouco tempo havia pessoas que não sabiam escrever, nem que a escrita existia… 

É o caso do personagem de A Biblioteca.
Que foi meu vizinho. Esse conto é muito engraçado porque diz “livremente inspirado em factos reais”. Toda a gente pensa que estou a referir-me aos crimes. Mas não. É sobre um senhor que, no século XX, viveu até aos 21 anos sem saber que existia uma coisa chamada escrita. Quando dizemos que, graças à bendita internet, uma criança em qualquer parte do mundo pode ter acesso à mesma informação de uma criança de Nova Iorque não estamos a dizer tudo. Como esse tenho outros casos reais, que um dia posso usar.

Num dos contos glosa ainda o caso Joana, cujo corpo nunca foi encontrado e cuja mãe terá sido agredida pela polícia. Vai compilando histórias de jornais? 
Sim, mas sem necessidade de me sentir atualizada. Por exemplo, só este mês me apercebi da verdadeira dimensão da tragédia do Meco. Narrada por um escritor, seria uma história inverosímil. Nesse caso, não é a praxe, nem os rituais macabros que me interessam, mas o que estamos dispostos a fazer para pertencer, as dinâmicas de grupo e o que elas dizem de nós. Não sei se alguma vez conseguirei tratar todos os recortes, uns trágicos, outros redentores, que acumulo.  

Sente-se, no entanto, que tem uma grande vontade de escrever sobre o agora. 
Também. Escrevo para criar um mundo paralelo onde me sinta mais confortável ou para contribuir para que o mundo em que vivemos seja um pouco melhor. 

Não são tarefas fáceis. 
Mas temos de tentar. De outra forma, seria uma coisa vã. Num certo sentido, escrever é um ato muito infantil: fechar-me num quarto a alinhar palavras e pensar que alguém vai aderir, acreditar, gostar do que escrever. Sem uma dimensão ética, talvez não passe de uma vaidade esquisita.

O poder da escolha
Como diz o título, tudo são mesmo histórias de amor?
Tudo são histórias de poder. 

Um título assim não venderia tanto.
Mas seria mais realista. Todas as relações são relações de poder. Optei por este título porque o amor é o mais benigno dos poderes. 

O que encontra literariamente nessas relações de poder?
A vida. Esse é o meu tema, o que me interessa explorar. O poder está muitas vezes associado ao mal, mas pode ser uma coisa boa. E deve ser exercido. Ter poder para acabar com uma situação injusta é maravilhoso. E uma responsabilidade. Um juiz deve ter o poder de repor a justiça. Um legislador, o de criar boas leis. Querem poder mais violento do que obrigar toda a gente a fazer ou deixar de fazer determinada coisa?

Qual o poder do escritor? 
O de construir mundos, que é imenso. Às vezes é brincar a Deus. Os Maias ocupam mais espaço na cabeça das pessoas do que qualquer outra família portuguesa. 

Diz que o amor é o mais benigno dos poderes, mas estes contos também falam da sua violência. 
O amor nunca é tranquilo, mal de nós se for. No conto Os Anjos por dentro falo da violência do amor em diálogo com A Escolha de Sofia, um filme perturbante, pois uma mãe tem de escolher o filho que salvará de um campo de concentração. Mas se em tempos de guerra tudo se justifica, o que acontece no dia-a-dia? Que mãe admite que faz escolhas? A maior violência não está na escolha, mas no que nos leva a escolher. E as pessoas têm medo das escolhas. Na verdade, são obrigatórias e da nossa natureza. Estão em todo o lado. Somos racistas ou não? Queremos isto ou aquilo? O que comemos? 

Não decidir pode ser uma forma de desculpabilização? 
É achar que não se pode fazer a diferença. Que o problema está sempre nos outros. Toda a gente diz que os portugueses conduzem mal, mas quem se inclui nesse grupo? Eu não tenho problemas em fazê-lo, até porque conduzo de facto muito mal. Em tudo, preocupa-me perceber se sou parte do problema ou da solução. Gostar de animais não é só andar com um porta-chaves com um ursinho fofinho. Se algum dia um exército de extraterrestres tentar escravizar a espécie humana, gostava que pelo menos um deles a defendesse, tomasse o nosso partido.  

É por isso que tem tomado tantas posições em defesa dos animais?
Apenas digo que já nos distanciámos tanto da vida natural que há coisas que não fazem sentido. O tigre quando decide caçar uma gazela parte esfomeado. É uma luta entre a vida ou a morte. Por mais que argumentem com a cadeia alimentar, nunca vi nenhum animal a congelar carne. 

Essa é uma imagem que podemos usar para o homem em geral? Que direitos andamos a congelar?
Todos, na verdade. O modo de vida ocidental vai tornar-se insustentável e vamos pagar uma fatura muito elevada. 

Para uma otimista, como já se confessou, essa não é uma visão muito pessimista?
Se fosse pessimista não achava que um ato individual pode fazer a diferença, que posso contribuir para um mundo melhor. A ação coletiva é muito importante, não há dúvida, mas as minhas decisões são ainda mais importantes, porque têm a vantagem de serem exequíveis. Não preciso votar num político. Intervir no que está ao meu alcance torna-me mais livre. 

A arte da comunicação
Diz na sua autobiografia, escrita para o JL e inserida neste livro, que teve de matar uma parte de si para se afirmar como escritora. Porquê?
Já me matei muitas vezes e provavelmente vou voltar a matar-me muitas mais. Não conseguia ser advogada e escritora ao mesmo tempo. Tive de decidir. E foi dramático. A escolha era entre uma vida economicamente estável e a incerteza. Crescer foi ganhar consciência de que não ia ter tempo para ser e fazer tudo o que queria. A certa altura, compreendi que estava condenada a ser escritora de serão, de fim de semana, de férias, ou se calhar nem isso, porque também levava processos para casa. Não dava. 

Escrever é a sua profissão?
É e igual a qualquer outra. Quem diz que consegue conciliar a escrita com outra atividade está de alguma forma a menorizá-la. Nunca ouvi ninguém perguntar a um médico se fazia outra coisa. Nem tudo se resume a uma questão de prazer. Como dizia um escritor, ter uma única ideia é trabalho para uma vida inteira. 

Além de tempo para escrever, o que ganhou mais com essa decisão?
Toda a gente quer ser amada, aceite, lida. Mas desde cedo percebi que se isso não acontecer não há mal nenhum. A invisibilidade que os meus livros tiveram durante alguns anos deu-me uma segurança incrível. Se vender 10 exemplares claro que fico preocupada, mas não muito e apenas porque entendo a escrita como a arte da comunicação. 

Em que sentido?
Tenho uma grande preocupação em chegar ao Outro. Estar numa redoma ou pensar que no futuro alguém vai perceber o que eu escrevi não me interessa. Se o leitor não perceber é porque falhei. Trabalho muito a linguagem por causa disso. Os contos e os romances têm muitas camadas, mas se alguma coisa não estiver percetível eu mudo. Nada me dá mais prazer do que receber cartas de leitores a confessar que nunca tinham lido um livro e que mesmo assim adoraram O Retorno. Quando comecei a ler também procurei essa ligação direta. 

Como foi a sua descoberta da leitura e da escrita?
Nunca tive livros em casa, sobretudo depois de regressar de Angola. Aos 14 anos, quando estava de regresso a Cascais, depois de uns anos em Trás-os-Montes, já sabia que queria escrever. Só faltava saber o quê. Para resolver a vontade, tirei um curso de datilografia. Para esclarecer a dúvida, fui à biblioteca. Perante tantos livros escolhi aquele que estava a emocionar uma senhora, quase à beira das lágrimas. Era da Corin Tellado. 

E gostou?
Devorei. Mas como a biblioteca ficava longe da minha casa, um dia decidi levar um livro maior. Sem saber quem era, calhou-me o Dostoievski. Com ele aprendi muito. Aliás, formei-me e deformei-me com a Literatura. De tal forma que quando tive a minha primeira desilusão de amor lembrei-me imediatamente da Madame Bovary. Até essa altura eu pensava que amantes era coisas de solteiras. Depois de ler o livro, fiquei na dúvida: se calhar as minhas vizinhas, ou pior, a minha mãe também tinha um amante. Mas só naquele momento, quando me magoei a sério, percebi a inquietação do livro e da personagem. 

Entrou na pele da personagem?
Completamente. Entendi que o amor era muito mais complicado. Mas também o contrário: que não era isso que queria para mim. Que não iria gostar de quem não gosta de mim. Com os livros também descobri que era relativamente simples viver num mundo paralelo. Já em Trás-os-Montes transformava cada tarefa numa aventura, como se fosse uma personagem da minha própria vida. A realidade pode revelar-se insustentável. Precisamos de fugas.

Entrevista publicada no JL 1134, de 19 de Março de 2014

Tiago Patrício: Era uma vez a Revolução em Trás-os-Montes

Há 40 anos, numa localidade muito distante, no interior de Trás-os-Montes, também se viveu o 25 de Abril de 1974. Foi, seguramente, uma Revolução diferente. Sem a força da rua e sem a forte presença dos militares. Cantou-se a Liberdade, mas também se temeu o peso dos costumes antigos e de uma sociedade muito estratificada. Foram essas contradições que Tiago Patrício, que nasceu no Funchal, em 1979, mas cresceu em Carviçais, em Torre de Moncorvo, quis captar no seu segundo romance, que acaba de chegar às livrarias com a chancela da Gradiva. 
Mil Novecentos e Setenta e Cinco é uma viagem ao passado, um tiro que não procura ser certeiro. Não escolheu o centro da Revolução dos Cravos, nem o dia que mudou Portugal. 
Ao regressar a casa, Horácio depara-se com uma aldeia revolucionária em curso. E quando o ano acabar, nem ele, nem os que o rodeiam, serão os mesmos. Para o escritor, este é também uma nova incursão no seu território literário. “É difícil sair de Trás-os-Montes”, diz. Hoje vive em Lisboa, mas a sua escrita ainda mora lá. 

Trás-os-Montes, o seu primeiro romance, tinha a duração de um dia. Este abarca um ano inteiro. A noção de tempo é importante na construção dos seus romances?
Sim. No primeiro, o dia mais longo do ano, 21 de Junho, neste o ano que mais demorou a passar, 1975. Aliás, no ano passado saiu um livro com o mesmo título e fiquei preocupado. 

Igual? Já tinha acontecido o mesmo com Trás-os-Montes, que era para se chamar O Cair da Noite
É verdade e depois a minha editora publicou o romance do Michael Cunningham, Ao Cair da Noite, e tive de mudar. Com este livro a opção foi escrever o ano por extenso, o que me agradou muito. Com Mil Novecentos e Setenta e Cinco sente-se a cadência das quatro palavras, das quatro estações, das quatro partes do livro. O tempo, de facto, importa. As personagens são apresentadas nos primeiros capítulos e depois têm de lidar com tudo o que vai acontecendo. 

Um dia e um ano remetem para a ideia de círculo perfeito.
A escrever ou a dar entrevistas divirjo muito, o que pode deixar o interlocutor diante de um nó cego. Eu próprio às vezes não sei para onde vou. Daí a importância da estrutura. Compreendi-o num seminário com Simon Stephens, que acentuava muito a importância dessa rede. Ter uma delimitação à qual as personagens estão constrangidas não quer dizer ausência de liberdade. Pode ser o contrário. Ao encontrar uma estrutura deixo de me preocupar com o esqueleto e concentro-me nas personagens. Entre A e B há uma infinidade de pontos para explorar. 

Quer dizer que sabe como começa e acaba o romance?
Exato, o que não quer dizer que diminua o interesse. Mesmo quando se sabe o “quê” fica a faltar o “como”. A certa altura do Werther, do Goethe, sabemos que ele morreu e que aquelas são as cartas que deixou sobre a secretária. Mas como morreu? A forma como se conta é um dos principais trabalhos do romancista. 

Ao tempo, acrescenta outro constrangimento: o geográfico. Trás-os-Montes é a base da sua literatura? 
É muito difícil sair de Trás-os-Montes. Há uma forma: mudar os nomes das ruas e das personagens. Horácio passar a Charles e Rua Direita a Fifth Avenue. A verdade é que estava a meio de um romance passado no Báltico, mas vi-me num beco sem saída por causa da entrada do sobrenatural na história. Alguém está a estender a roupa e sente uma mão. Ainda não percebi de onde veio. Como não queria entrar pelo mundo dos vampiros ou do fantástico deixei-o de lado. Virei-me para o que sobrou do Trás-os-Montes e para uma peça de teatro em que imaginava que o 25 de Abril não tinha acontecido. 

O que se revelou apelativo nesse material?
Em 1975 eu ainda não era nascido, se fosse talvez não me lembrasse de escrever sobre esse ano. É a coisa mais natural do mundo. Em concreto, este livro começou há mais ou menos dez anos num jantar de família entre o Natal e o Ano Novo. Um primo mais velho lembrou-se que nesse tempo se discutia política no café durante o dia e faziam-se rondas e contagens pela aldeia à noite. Quando passamos à sobremesa acrescentou: “ninguém imagina como eram as coisas naquela altura”. No digestivo pedi para me contar mais coisas, mas na minha família nunca se conta nada até ao fim. 

Escreveu para o descobrir? 
Sim, para perceber esse ano em que tudo parecia possível, em que tudo era um ato político, tal como hoje tudo parece ser economia. É regressar ao 25 de Abril mas um bocadinho ao lado. É a ideia do filme do João César Monteiro: O que farei com esta espada? Nos períodos revolucionários, cada decisão, por mais pequena que seja, tem um alcance enorme e pode afetar muita gente. 

É também um olhar sobre o 25 de Abril num dos locais mais distantes de Portugal continental? 
Isso também me interessou muito. Ver como a Revolução chegou a uma aldeia de Trás-os-Montes, por que intermédio, que mudanças desencadeou, como é que se tentou apanhar a energia progressista e conter a sua impetuosidade. 

Qual seria a melhor imagem para descrever esse impacto?
A de uma tensão permanente. Em Trás-os-Montes a sociedade era muito estratificada, mas não tanto como no Alentejo. Poucos foram os momentos de comunhão ou fraternidade entre proprietários, comerciantes e camponeses. A ideia que tenho é esta: quase todos achavam que tinham alguma coisa a perder com a Revolução, mesmo que fosse meio palmo de terra. Pensou-se primeiro em como manter os privilégios com o que aconteceu. Lembro-me de quando era pequeno ouvir o antigo Regedor da aldeia dizer: “25 de Abril, 25 da Merda”. Tudo o que acontecia de mau era culpa da Revolução. É por isso que o coveiro do romance diz que em Trás-os-Montes tudo chegava com 20 anos de atraso, até o Terramoto de 1755! 

Num espaço pequeno havia menos pudor em mostrar opiniões contra a Revolução?
Talvez. Mas na altura até a direita se dizia socialista. Houve de facto uma aparente viragem à esquerda, em parte porque se pensava que era mais fácil manter os privilégios tendo uma perninha no lado do inimigo. Foram histórias desse tempo, muito ricas, que tentei misturar neste caldeirão de acontecimentos. Por se passar em Trás-os-Montes, senti que estava menos preso aos factos históricos, ao que acontecia em Lisboa. Quis perceber como uma sociedade fechada, pouco politizada, reagia a uma grande abertura. Tudo numa linguagem direta e sem filtros.

O teatro dentro do romance
Tem escrito muito para teatro. Essa experiência influenciou a escrita deste livro?
Muito. Há um momento em que a narrativa desaparece e o livro torna-se puro ato. Muitas vezes não se sabe quem está a falar. Há páginas inteiras só com diálogos, sem se nomear a personagem. 

É a memória da peça que esteve na base do livro?
Procurei essa fluência, sim, e criar uma peça informal dentro do romance. Como se fosse possível em certos momentos passar à cena. Se estivéssemos em palco, haveria um narrador que na boca de cena explicaria o que se ia passar e depois entrariam as personagens. Gosto dessas descontinuidades, da ideia de um romance onde cabe tudo, momentos íntimos, acontecimentos vorazes, partes que nem sempre encaixam bem. Tem a ver com o temperamento das personagens, que no início foram pensadas com nomes começados com a letra A. Depois, no entanto, revelou-se impraticável. Eu próprio já não sabia quem era quem. 

Por que quis nomes começados em A?
Em tempos pensei fazer 26 romances, um para cada letra do abecedário. Há até um músico norte-americano, Sufjan Stevens, que pensou fazer um álbum para cada Estado, mas ficou-se por três. Os projetos que têm uma base quase matemática são desafiantes. O que vou fazer se não posso fugir a esta regra?

O que lhe agrada nesse jogo das letras?
A sua irradiação. Não é o mesmo chamar Ofélia ou Penélope a uma personagem. Mesmo se escrevesse um romance com um determinado nome e o alterasse no fim, na revisão, acredito que mudaria a narrativa também. Tem a ver com o intertexto, com o que chamamos cultura, a ligação a outros romances, a apropriação. 

No seu mestrado, está a estudar os efeitos da literatura. Que consequências gostava que este romance tivesse? 
A literatura tem consequências, mas não são mensuráveis. Interessei-me por este tema por causa do homem que assassinou John Lennon. Ele dizia que fez o que fez por causa do romance À Espera do Centeio, de J. D. Salinger. Li o livro, que é fabuloso, e não encontrei motivos para se matar uma pessoa. 

Não espera que alguém cometa um crime com este livro…
Não sei se sou otimista ou pessimista, apenas que tenho pouca esperança na literatura de boas intenções e na de más também. Nos meus livros há sempre uma palavra ou uma expressão que está subjacente a tudo. Em O Livro das Aves era “bondade”, noutro livro “beleza terrível”, noutro ainda “estranheza”. Neste é “ironia criativa”. 

Em que sentido?
Uma ironia que ri com o leitor mas que não goza com ninguém. Não escrevo para depreciar. Não tentei moralizar o tema, nem ver quem teve razão. Ninguém sai bem tratado, mas mal também não.

Não lhe interessou o julgamento?
Nem sobre as pessoas, nem sobre o tempo. Mil Novecentos e Setenta e Cinco não é uma crónica de costumes, nem uma caricatura, se bem que um dos mecanismos da literatura seja a majoração e a minoração. Se puder causar um riso interior é bom, mas não é uma anedota sobre o 25 de Abril, nem sobre a Revolução, que sempre me causou um grande fascínio pela forma como foi preparada pelos jovens capitães e teve em Salgueiro Maia o seu herói, na Rua do Arsenal, enfrentando de peito aberto o último estertor do regime.

Mas é um livro político?
Na medida em que trata de reações individuais e coletivas. No fim, uma das personagens percebe que o projeto que ele tem deixa de fazer sentido se não for partilhado por outras pessoas. Essa é uma conclusão que também aplico à minha escrita. Primeiro, escrevo com as minhas vozes e as minhas preocupações. Depois tento chegar ao outro, a quem lê.

Entrevista publicada no JL 1135, de 2 de Abril de 2014

Thursday, April 3, 2014

José Carrasco

Jesus Carrasco por Lisboa a divulgar o seu primeiro romance, Intempérie, uma edição da Marcador

Tuesday, April 1, 2014

Um mentira mil vezes repetida

Um novo blogue. Irregular, como a musa. Todos os dias. Ou de vez em quando. Lembranças, pensamentos, hipóteses. Imagens e leituras. Ou outra coisa qualquer.