Um dia, ainda no tempo das disquetes e das realidades pouco virtuais, um vírus entrou no computador de Dulce Maria Cardoso e apagou-lhe todos os ficheiros, incluindo várias versões de um romance. Ficou em choque. E sem saber o que fazer. Chegou até a dar como perdida a história que a ocupou durante muitos meses, mas no fim não baixou os braços. Armou-se de um arsenal de comida. Protegeu-se com uma retaguarda de familiares e amigos. E fechou-se em casa para reconstituir o que ainda estava vivo na sua memória. Surgia então Os Meus Sentimentos, o seu segundo romance, e um radical método criativo de trabalho.
Os contos de Tudo são Histórias de Amor, a sua segunda coletânea, depois de Até Nós, também são resultado desse trabalho de recordação e depuração. Para Dulce Maria Cardoso, escrever é, numa primeira fase, um ato de descoberta. Mas depois, quando apaga o que escreveu (“sem hipótese de o recuperar, pois de outra forma não funciona”, garante), torna-se um meio para iluminar o essencial, uma revelação. É entre esses dois polos que se tem afirmado a sua voz, uma das mais singulares da Literatura em Língua Portuguesa: transfigurando a sua experiência pessoal, como em O Retorno, ou esticando os limites da prosa, como em Os Meus Sentimentos. Em Tudo São História de Amor, que reúne textos publicados em jornais (incluindo a sua autobiografia no JL) e em pequenas edições, descobre-se uma escritora comprometida com o seu tempo e com a sociedade em que vive. A sua literatura será sempre um exercício ético.
Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes (Fonte Longa, Carrazeda de Ansiães), em 1964. A infância, no entanto, passou-a em Angola. O pai era exportador de café, em Luanda, gerindo uma frota de camiões. Desse período (chegou com seis meses e partiu com 11 anos) guarda muitas e boas memórias. A “generosa mangueira” do quintal e “o mar e o espaço” que a moldaram. Ainda hoje, aliás, se surpreende com as palavras de kimbundo que reteve. E recentemente, quando foi ao Brasil, ao pedir uma água de côco sentiu que permaneciam dentro de si os gestos que permitem a abertura do fruto. Tudo isso esteve na origem de O Retorno. A ponte áerea de Rui, o protagonista do romance, distinguido com o Prémio Ler / Booktailors, foi também a sua. Regressada a Portugal, em 1975, e largada em Cascais no meio de inúmeros retornados, a sua família decidiria voltar para Trás-os-Montes.
Com O Retorno Dulce Maria Cardoso teve o reconhecimento (do público e da crítica) que há muito merecia. Formada em Direito, pela Universidade de Lisboa, estreou-se na ficção em 2002, com Campo de Sangue, que recebeu o Grande Prémio Acontece de Romance. Era já então uma autora plena, de prosa segura e narração intensa. Seguiram-se Os Meus Sentimentos (Prémio União Europeia para a Literatura), e Chão de Pardais (Prémio Pen Club), que se encarregaram de revelar uma escritora em constante fuga da sua “zona de conforto”, imagem que estes contos reforçam. Não gosta de se repetir, nem tem medo de se reinventar. Foi o que fez quando decidiu ‘matar’ a advogada que também era e assumir-se escritora a tempo inteiro. Ou como recorda na sua Autobiografia: “O que queres ser quando fores grande? Fumadora, respondi. Riram-se e disseram, isso não é profissão. Dez anos mais tarde, perguntaram noutra festa, o que queres ser? Escritora, respondi. Isso não é profissão, disseram.” Dulce nunca percebeu porquê. Mas também nunca deixou de escrever.
Qual o lugar do conto na sua escrita?
Um lugar estranho. Gosto muito de contos, mas nunca decidi escrever um. Partiram sempre de encomendas, da vontade de responder ao desafio. E quanto menos me identifiquei com o tema, mais me esforcei, melhor me saiu.
Isso é uma boa notícia para quem encomenda.
Quando as encomendas são abertas, pouco dirigidas ou limitadas, podem tirar-nos da nossa zona de conforto. No meu caso, as ideias que tenho são todas para romances.
Um conto nunca deu origem a um romance ou vice-versa?
Nunca. Nos dois procuro coisas diferentes. Ambos são, no entanto, exercícios violentíssimos. Um requer fôlego e resistência, o outro, rapidez e síntese. No romance é preciso namorar. No conto tem de haver amor à primeira vista, paixão. Já me disseram que o conto que abre esta antologia, Este Azul Que Nos Cerca, daria um belo romance. Tem um ambiente sugestivo e o potencial da claustrofobia da ilha, mas não consigo imaginar mais nada. Foi pensado para ser como é.
Estes contos são muito diferentes entre si. São também um lugar de experimentação?
Sim. De procura de novas vozes, estruturas diferentes. A arte só é arte quando corre riscos. Se já sabemos o que vamos fazer, regressamos à tal zona de conforto. Não Esquecerás é um dos meus contos favoritos e tinha tudo para falhar.
Porquê?
Era das encomendas que se rejeita imediatamente. Do Centro Comercial Colombo, para uma iniciativa de Natal, dedicada ao tema da solidariedade e com lucros a reverter para uma fundação. O cliché montado.
O que lhe agradou no resultado final?
Escrever é dar a um Outro. E as famílias afetadas pela tragédia da ponte de Entre-os-Rios já tinham perdido tanto que me orgulho de lhes ter devolvido um pouco da memória das vítimas. O interesse da Mónica Calle, que já usou este conto num espetáculo, e do João Mário Grilo, que o está a adaptar a uma curta-metragem, faz-me acreditar que o fiz bem.
Esse conto podia ser um manifesto?
A realidade é muito sugestiva e tentadora. O problema é poderes usá-la sem te transformares num abutre. Quando recebi o convite, pensei: o que pode uma pessoa que vive em Lisboa, que nunca foi a Entre-os-Rios, fazer por alguém que já sofreu tanto? Como fugir à exploração mediática das televisões, que nesse ano passaram a ter emissões 24 horas por dia? Nunca vi nada mais obsceno do que um microfone lançado a quem perdeu um familiar. E passado uns quantos meses o interesse desapareceu.
O que contrapõe o escritor?
A única saída é colocarmo-nos dentro do autocarro, dizer que uma parte de nós também morreu, embora a morte seja um assunto muito sério. No fundo, dizer que te assumes como responsável. Aquela ponte não caiu por acaso. Havia relatórios e denúncias. Faz lembrar a curva do Mónaco, na Marginal de Cascais. Morreu lá muita gente mas só foi arranjada quando um general perdeu lá a vida. Somos todos iguais mas uns mais iguais do que outros. Uma das funções da arte é tentar que essa igualdade seja verdadeira.
“Não esquecerás” é então um mandamento literário?
É, antes de mais, reconhecer que ao esquecermos o Outro estamos também a promover o nosso próprio esquecimento. Um dia a tragédia chegará a nós. Mas se o interior estiver protegido, o centro também estará. De igual forma, se os emigrantes ilegais estiverem protegidos, os legais também estarão. A questão é sempre o alargamento da proteção, não a sua diminuição, como se advoga em tempos de crise. É disso que os políticos nos querem convencer.
Mais do que espectadores ou testemunhas, somos cúmplices?
O mal sempre aconteceu pela ação de poucos e pela omissão de muitos, às vezes de milhões. Essa conivência preocupa-me. A nossa classe dirigente, que anda sempre associada às palavras incompetência e corrupção, não é muito vasta. Somos infinitamente mais. Por que razão estamos parados?
Os contos e os romances são formas de intervenção?
Não considero que a literatura sirva para passar mensagens, a não ser em casos pontuais e sem descurar a poeticidade do texto. Mas também não faz sentido preocuparmo-nos apenas com as figuras de estilo. Não podemos olhar para a realidade de uma forma neutra.
Escrever é uma forma de tomar posição?
Viver é tomar posição. Escrever ainda mais. Como qualquer proposta artística.
Uma dimensão ética
Que critérios usou para organizar esta antologia?
Estes são os contos que mais me pertencem. Até agora não me envergonho de nada que publiquei, mas deixei muitos de fora. O primeiro critério foi literário. O segundo, sentir-me nestas histórias.
Aproveitou a oportunidade para fazer um balanço?
Quis mais tornar acessível, partilhar contos publicados em pequenas edições e que muitos leitores não conhecem. Senti ainda vontade de atualizar a minha anterior coletânea de contos, com a qual já não me identifico. Mas aqui coube tudo, do ultramoderno de Coisas que acarinho e me morrem entre os dedos entre os dedos à ruralidade de Humal. Tanto num caso, como no outro, sou eu que estou lá. Não se pode ignorar a internet, que nos está a mudar, tal como não podemos esquecer que até há bem pouco tempo havia pessoas que não sabiam escrever, nem que a escrita existia…
É o caso do personagem de A Biblioteca.
Que foi meu vizinho. Esse conto é muito engraçado porque diz “livremente inspirado em factos reais”. Toda a gente pensa que estou a referir-me aos crimes. Mas não. É sobre um senhor que, no século XX, viveu até aos 21 anos sem saber que existia uma coisa chamada escrita. Quando dizemos que, graças à bendita internet, uma criança em qualquer parte do mundo pode ter acesso à mesma informação de uma criança de Nova Iorque não estamos a dizer tudo. Como esse tenho outros casos reais, que um dia posso usar.
Num dos contos glosa ainda o caso Joana, cujo corpo nunca foi encontrado e cuja mãe terá sido agredida pela polícia. Vai compilando histórias de jornais?
Sim, mas sem necessidade de me sentir atualizada. Por exemplo, só este mês me apercebi da verdadeira dimensão da tragédia do Meco. Narrada por um escritor, seria uma história inverosímil. Nesse caso, não é a praxe, nem os rituais macabros que me interessam, mas o que estamos dispostos a fazer para pertencer, as dinâmicas de grupo e o que elas dizem de nós. Não sei se alguma vez conseguirei tratar todos os recortes, uns trágicos, outros redentores, que acumulo.
Sente-se, no entanto, que tem uma grande vontade de escrever sobre o agora.
Também. Escrevo para criar um mundo paralelo onde me sinta mais confortável ou para contribuir para que o mundo em que vivemos seja um pouco melhor.
Não são tarefas fáceis.
Mas temos de tentar. De outra forma, seria uma coisa vã. Num certo sentido, escrever é um ato muito infantil: fechar-me num quarto a alinhar palavras e pensar que alguém vai aderir, acreditar, gostar do que escrever. Sem uma dimensão ética, talvez não passe de uma vaidade esquisita.
O poder da escolha
Como diz o título, tudo são mesmo histórias de amor?
Tudo são histórias de poder.
Um título assim não venderia tanto.
Mas seria mais realista. Todas as relações são relações de poder. Optei por este título porque o amor é o mais benigno dos poderes.
O que encontra literariamente nessas relações de poder?
A vida. Esse é o meu tema, o que me interessa explorar. O poder está muitas vezes associado ao mal, mas pode ser uma coisa boa. E deve ser exercido. Ter poder para acabar com uma situação injusta é maravilhoso. E uma responsabilidade. Um juiz deve ter o poder de repor a justiça. Um legislador, o de criar boas leis. Querem poder mais violento do que obrigar toda a gente a fazer ou deixar de fazer determinada coisa?
Qual o poder do escritor?
O de construir mundos, que é imenso. Às vezes é brincar a Deus. Os Maias ocupam mais espaço na cabeça das pessoas do que qualquer outra família portuguesa.
Diz que o amor é o mais benigno dos poderes, mas estes contos também falam da sua violência.
O amor nunca é tranquilo, mal de nós se for. No conto Os Anjos por dentro falo da violência do amor em diálogo com A Escolha de Sofia, um filme perturbante, pois uma mãe tem de escolher o filho que salvará de um campo de concentração. Mas se em tempos de guerra tudo se justifica, o que acontece no dia-a-dia? Que mãe admite que faz escolhas? A maior violência não está na escolha, mas no que nos leva a escolher. E as pessoas têm medo das escolhas. Na verdade, são obrigatórias e da nossa natureza. Estão em todo o lado. Somos racistas ou não? Queremos isto ou aquilo? O que comemos?
Não decidir pode ser uma forma de desculpabilização?
É achar que não se pode fazer a diferença. Que o problema está sempre nos outros. Toda a gente diz que os portugueses conduzem mal, mas quem se inclui nesse grupo? Eu não tenho problemas em fazê-lo, até porque conduzo de facto muito mal. Em tudo, preocupa-me perceber se sou parte do problema ou da solução. Gostar de animais não é só andar com um porta-chaves com um ursinho fofinho. Se algum dia um exército de extraterrestres tentar escravizar a espécie humana, gostava que pelo menos um deles a defendesse, tomasse o nosso partido.
É por isso que tem tomado tantas posições em defesa dos animais?
Apenas digo que já nos distanciámos tanto da vida natural que há coisas que não fazem sentido. O tigre quando decide caçar uma gazela parte esfomeado. É uma luta entre a vida ou a morte. Por mais que argumentem com a cadeia alimentar, nunca vi nenhum animal a congelar carne.
Essa é uma imagem que podemos usar para o homem em geral? Que direitos andamos a congelar?
Todos, na verdade. O modo de vida ocidental vai tornar-se insustentável e vamos pagar uma fatura muito elevada.
Para uma otimista, como já se confessou, essa não é uma visão muito pessimista?
Se fosse pessimista não achava que um ato individual pode fazer a diferença, que posso contribuir para um mundo melhor. A ação coletiva é muito importante, não há dúvida, mas as minhas decisões são ainda mais importantes, porque têm a vantagem de serem exequíveis. Não preciso votar num político. Intervir no que está ao meu alcance torna-me mais livre.
A arte da comunicação
Diz na sua autobiografia, escrita para o JL e inserida neste livro, que teve de matar uma parte de si para se afirmar como escritora. Porquê?
Já me matei muitas vezes e provavelmente vou voltar a matar-me muitas mais. Não conseguia ser advogada e escritora ao mesmo tempo. Tive de decidir. E foi dramático. A escolha era entre uma vida economicamente estável e a incerteza. Crescer foi ganhar consciência de que não ia ter tempo para ser e fazer tudo o que queria. A certa altura, compreendi que estava condenada a ser escritora de serão, de fim de semana, de férias, ou se calhar nem isso, porque também levava processos para casa. Não dava.
Escrever é a sua profissão?
É e igual a qualquer outra. Quem diz que consegue conciliar a escrita com outra atividade está de alguma forma a menorizá-la. Nunca ouvi ninguém perguntar a um médico se fazia outra coisa. Nem tudo se resume a uma questão de prazer. Como dizia um escritor, ter uma única ideia é trabalho para uma vida inteira.
Além de tempo para escrever, o que ganhou mais com essa decisão?
Toda a gente quer ser amada, aceite, lida. Mas desde cedo percebi que se isso não acontecer não há mal nenhum. A invisibilidade que os meus livros tiveram durante alguns anos deu-me uma segurança incrível. Se vender 10 exemplares claro que fico preocupada, mas não muito e apenas porque entendo a escrita como a arte da comunicação.
Em que sentido?
Tenho uma grande preocupação em chegar ao Outro. Estar numa redoma ou pensar que no futuro alguém vai perceber o que eu escrevi não me interessa. Se o leitor não perceber é porque falhei. Trabalho muito a linguagem por causa disso. Os contos e os romances têm muitas camadas, mas se alguma coisa não estiver percetível eu mudo. Nada me dá mais prazer do que receber cartas de leitores a confessar que nunca tinham lido um livro e que mesmo assim adoraram O Retorno. Quando comecei a ler também procurei essa ligação direta.
Como foi a sua descoberta da leitura e da escrita?
Nunca tive livros em casa, sobretudo depois de regressar de Angola. Aos 14 anos, quando estava de regresso a Cascais, depois de uns anos em Trás-os-Montes, já sabia que queria escrever. Só faltava saber o quê. Para resolver a vontade, tirei um curso de datilografia. Para esclarecer a dúvida, fui à biblioteca. Perante tantos livros escolhi aquele que estava a emocionar uma senhora, quase à beira das lágrimas. Era da Corin Tellado.
E gostou?
Devorei. Mas como a biblioteca ficava longe da minha casa, um dia decidi levar um livro maior. Sem saber quem era, calhou-me o Dostoievski. Com ele aprendi muito. Aliás, formei-me e deformei-me com a Literatura. De tal forma que quando tive a minha primeira desilusão de amor lembrei-me imediatamente da Madame Bovary. Até essa altura eu pensava que amantes era coisas de solteiras. Depois de ler o livro, fiquei na dúvida: se calhar as minhas vizinhas, ou pior, a minha mãe também tinha um amante. Mas só naquele momento, quando me magoei a sério, percebi a inquietação do livro e da personagem.
Entrou na pele da personagem?
Completamente. Entendi que o amor era muito mais complicado. Mas também o contrário: que não era isso que queria para mim. Que não iria gostar de quem não gosta de mim. Com os livros também descobri que era relativamente simples viver num mundo paralelo. Já em Trás-os-Montes transformava cada tarefa numa aventura, como se fosse uma personagem da minha própria vida. A realidade pode revelar-se insustentável. Precisamos de fugas.
Entrevista publicada no JL 1134, de 19 de Março de 2014